Livro: nomear é preencher o vazio, de Roberto dos Santos

Eu vejo assim: o poeta chega na praça, abre sua estrada/livro e nos oferece o passeio. A gente se junta em volta e ele nos provoca mostrando pequenos trechos do caminho:

 

Dama do Crepúsculo

 

A trama bizarra da vida
Não pede passagem
Irrompe a cortina da ideia
Mostra seus dentes de fera
E morde a carne dos vivos

A morte vem devagar
Espreita pelas trilhas que construímos
E não espera que a tirem para dançar
Encerra nossa caminhada
Tornando-se o que é
Ao dissolver o que em vida fomos
Nos reduzindo e igualando
Um a um somando
O que a nós nos subtrai

Certeza única da existência
E ao mesmo tempo seu maior mistério
A todos um dia ela encontrará
Sobre ela sempre nos indagamos
Quando e com que face virá?
E como um firmamento acima do firmamento
Impassível e paciente
Do Imensurável
Ela
A todos contempla

 

Natural de Fortaleza, Ceará, reside há uma década em Brasília. Sociólogo, pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Há quase duas décadas se dedica a estudar políticas protetivas para crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade
social. Recentemente iniciou estudos acerca de histórias em quadrinhos. Escreve poemas desde a infância, período em que se dedicou amadoramente a desenhar e criar personagens para histórias em quadrinhos. Chegou a organizar um grupo para produção de fanzines, o Clube de Histórias em Quadrinhos (CHQ) nos anos noventa.
Participou do movimento secundarista e universitário e essa influência emerge em alguns de seus poemas nesta obra. Atualmente é professor de Sociologia do Instituto Federal de Brasília (IFB), onde leciona no Campus Estrutural. No momento tem se dedicado a projetos para futuras publicações literárias de sua lavra.

 

 

Apresentação 

 

á quem viva a ilusão de vida plena, ao viver a alienação de uma vida vazia. Quem assim vive tem todas as possibilidades do mundo, por serem ricas de nada. São, portanto, essenciais em porvir. E há aquelas pessoas que vivem intensamente as lutas e vicissitudes do tempo presente e têm substância existencial. Eis o porquê dos versos colhidos neste livro para epígrafe desta apresentação. Roberto dos Santos Silva é uma dessas pessoas de substancial existência.

Ele constrói até no vácuo a sua expressão. Preenche o vazio com o essencial presente, transforma-o em coisa densa, tangível, porque o nomeia. E ao nomear o vazio, revela a existência de um aqui-e-agora vivido por quem sente-pensa-sente e pensa e faz e transforma o que era nada em substância.

Kelsen Bravos
escritor

 

 

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  (   (   SELEÇÃO de POEMAS   )    )

Festa Cósmica

O Inesperado veste preto
Posso sentir seu hálito de almíscar no ar
E sentir suas tenazes
Apertarem o meu peito
Com seu doce sabor de tempestade.

O Acaso é seu amigo e andam juntos.
Mas há quem duvide disso
E há aqueles que sustentam
Apostando que não temos sorte:
Total expropriação da Fortuna.

A Mudança vive de pileque e dizem
Não sabe o que faz
Quando mal toma consciência de seus atos
Já fez outra de novo.

O Belo tem mal gosto
E gosta de se esconder
Ninguém o entende, afirma.

A Verdade já
Vive mudando de endereço
E não é uma companhia, falam, muito confiável
É promíscua e nega seu passado
Diz que gosta de sair com todos
Mas não é de ninguém

A Distração diverte a todos
Enquanto o Tempo, infatigável, faz o seu trabalho
Pelos salões da grande festa cósmica
Tudo parece caótico
Tudo está em perfeita ordem
Conforme os imprevistos
E no final do dia o Ocaso expulsa a todos
E tem que limpar toda a bagunça sozinho.

Mandrágora

Largue tudo
O que não se resumir a nada
E carregue consigo
Apenas a matéria que semeia teu sono
E regue comigo
O solo que é tomado por nossos passos
Mas negue
Se preciso
Qualquer sentido
Mesmo que conciso
O querer é lâmina cega
Entrega enquanto toma, mas você já sabe disso

 

Inventário

Divago pela pele opaca da lua
Devagar
Vago
Sobre tua pele nua

Meus pensamentos são presas
Que sem pressa
Correm pelos pelos teus
E estes
Como correntes
Murmuram indolentes
Aos meus músculos
Medula
Dentes
Um cântico blasfêmico do abismo

Teus cabelos estendo como lira
Deles
Retiro a melodia rica
Da jornada do claustro
E da solidariedade do meu retiro

Minha pele é pergaminho
Em que a vida inscreve
Gota a gota
A marca indelével de nosso lento
E inexorável esgotamento

Meus dentes oferendo como um tributo
Para a maciez das carnes
A dureza do tempo
E a saciedade da terra

Meu esqueleto ergo como haste
Posta para hastear
O augusto estandarte
Do sepulcro encefálico repleto
De ideias
Sentimentos
E ideais
Que destaco dentre os quais
Teu insigne e singelo reflexo

A ti deixo
Minha finitude
E o legado do meu rosto
Meus lábios
Voz
Mãos
Todo o meu corpo
Que se desmancharão
Amiúde
Nas águas da pia sacra
Do esquecimento teu

E de tê-la conhecido
Apenas depois do meio-dia
Deixo
Com dó
Um cego nó
De arrependimento meu.

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