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Conto Brasil 8: Apresentação dos contos vencedores

Esta é a Antologia Conto Brasil e te convidamos a folhear o livro e a conhecer a multiplicidade da força narrativa brasileira. Viva a tensão emocional do conto vencedor, O que deixamos na cozinha, de Letícia Câmara e dos demais autores selecionados para a presente edição.

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Conto vencedor

 

o que deixamos na cozinha

Letícia Câmara (rio de janeiro, rj) @camara_lett

 

Uma noite de maio, depois do jantar, meu marido informou à muito custo que estava determinado em me deixar.

Me olhou com tanta dor e sofrimento, um olhar tão pesado de lágrimas e tão enrugado pelo tempo (apesar de tão pouco tempo haver passado) que meu coração se apertou. Ali finalmente compreendi o fraco que ele era. “Covarde” foi o que eu disse, não com palavras. Nos olhamos, e sem um ruído sequer, estava terminado.

Enquanto eu lavava os pratos suavemente, sentindo o fedor do sabão, ele arrumava as malas. O tique-taque dos ponteiros eram gotas caindo em um lago. A água mal se move, mal se percebe, e nunca se exalta. A água não sente. E água envolvia meus dedos enquanto eu lavava.

O relógio bateu duas horas, impaciente. A louça diminuía cada vez mais depressa. Eu senti quando ele parou atrás de mim na cozinha. Olhei para o relógio, que voltara a pipilar silencioso. O reflexo dele, turvamente refletido em uma panela desavisada que secava bem ao lado da pia, era generoso ao demonstrar seu sofrimento. Tudo estava distorcido sob a superfície do metal, desde o peito arfando como um passarinho, às lágrimas escorrendo como o sangue vazando de seu coração furado.

– Beatriz…

– Vai chover. O guarda-chuva está na cômoda – Informei sem me virar. Ele emitiu um guincho. O ar preso em sua garganta ia sair. Ele ia lutar, berrar, implorar. Dizer que me amava. Não existiria um som depois de suas súplicas. Senti o sangue pulsar em suas mãos não molhadas e livres de sabão. Ele ansiava pelo toque, queria o amor da esposa. Mas naquela cozinha não havia esposa nenhuma.

– Por que você insiste que eu te machuque, coração? – Falei sem um pingo de emoção. A respiração dele desregulada. O choro rachando o ar em incontáveis pedaços de soluços que ele tentava tão famintamente abafar. Ainda assim o peito murcho queria gritar, pedir, rastejar. Um passo vacilante na direção da pia, seguido por uma mão que começava a se esticar rumo ao tecido azul da camisa da figura lavando a última peça de louça.

– A cômoda – Ordenei, mais uma vez. E senti que a mão se encolhera, e depois se voltara à direção oposta; a da maçaneta. Virado para a porta que entreabrira, com um pé dentro e outro já fora e as malas estacionadas no tapete, ele deu um último olhar na direção da mulher que amava. E justo quando ia dizer alguma coisa, a última peça de louça terminou de ser enxuta. Ainda assim, eu não me virei, porque a mulher que ele amava não estava naquela cozinha.

A porta fechou. Minutos passaram. O relógio batia muito devagar agora. E só sobrávamos nós: o relógio, as panelas na cozinha, e eu. Que sem aviso, caí no chão.

Olhei para o ladrilho onde aterrissara, e percebi que estava molhado. Molhado? Ah, sim. Eu derramara água. Pelo menos ele não percebera. Pelo menos ele não estava aqui para vê-la derramada no chão. Pelo menos ele não estava, nem estaria naquela cozinha nunca mais.

Ainda sem me sentar, toquei meu rosto. O olhar fixo na porta se voltou aos dedos molhados. Sim. Era dali que vinha a maldita água.

 

 

Sumário desta edição

 

Segundo colocado:

21 Oximoro

Evaristo Soares

 

23 Tião das candongas

Sebastião Amâncio

24 Por amor

Daniel Pio de Oliveira

25 Meio-dia em Ponto!

Rosilene Leonardo da Silva

26 A Autenticidade em tempos de aparências

Matile Facó

27 O inventei

Rafaela Navas

28 A porta do banheiro

Roberto Filho

29 Abandono

Coracy Teixeira Bessa

30 Fora dos trilhos

Kryssia Ettel

31 O Sol e a Lua de Maisa

Ana L. Horvath

32 A escuridão

peter lehmann raffa

33 Ela se apaixonou pelo seu jeito

Maria Fernanda Henrique

34 Aquilo que falta

Acsa Maira

35 A faxineira e o patrão

Ronaldo Cupertino de Moraes

36 Obrigado por teu amor

J Souza

38 Redentor

Gabriel Xavier

39 Sentimentos

Jose Henrique de Andrade Silva

40 Filmes

André Anjos

41 O quadro

Bel Guimarães

42 A Assombração do Ônibus

Mestre Tinga das Gerais

43 Conto com encanto!!

José Claudio Oliveira Garcia

44 Multa

Lucas Oliveira

45 O desvalido da praça da piedade

Tasso Paes Franco

46 Velhice

João Lucas Alcantara Santos

47 As avencas

Dayse Cangussu Souza

49 Um homem sistemático

Rômulo Resende Reis

50 Pérola

Alexandre Bernardi

 

apresentação da antologia

 

A literatura brasileira contemporânea é um vasto oceano de narrativas intensas, inovadoras e repletas de nuances. Na Antologia Conto Brasil Volume 8, somos convidados a mergulhar em histórias que exploram a profundidade da psique humana, o jogo da linguagem e as entrelinhas do cotidiano. Neste volume, dois contos se destacam como grandes vencedores, revelando a força e a versatilidade da ficção nacional: O que deixamos na cozinha, de Letícia Câmara, e Oximoro, de Evaristo Soares.

No conto de Letícia, O que deixamos na cozinha, o leitor é imerso em um ambiente carregado de tensão emocional, onde gestos cotidianos escondem sentimentos latentes. A narrativa acompanha um término conjugal silencioso, onde cada olhar e cada respiração carregam um peso avassalador. A protagonista, que mantém sua compostura enquanto lava a louça, transforma a cozinha em um palco de despedida contida, mas devastadora. A repetição dos elementos – a água, o relógio, a pia – intensifica a atmosfera de resignação e dor abafada. No final, quando as lágrimas se confundem com a água derramada, a autora constrói um clímax sutil e poderoso, reforçando a dualidade entre o controle aparente e o sofrimento incontornável. Letícia Câmara domina a arte do subtexto, onde o que não é dito fala mais alto do que qualquer palavra.

Oximoro, de Evaristo Soares, conduz o leitor a um jogo metalinguístico brilhante, no qual a própria linguagem se torna personagem. O conto personifica a figura de linguagem “oximoro”, transformando-o em um personagem paradoxal, que desafia a lógica e se move entre opostos como “mentiras sinceras” e “sábia ignorância”. Evaristo brinca com as contradições do discurso, construindo um texto que transita entre humor e reflexão, filosofia e ironia. A narrativa, ao mesmo tempo que homenageia o poder da palavra, desafia o leitor a repensar as fronteiras do sentido e do absurdo. O conto é um exemplo notável de como a literatura pode ser, simultaneamente, um exercício de criatividade e uma experiência intelectual instigante.

Ao reunir contos como esses, Conto Brasil reafirma a vitalidade da prosa curta brasileira, que se expande por diferentes caminhos – do drama intimista ao experimentalismo linguístico – sem perder a força e a relevância. Esta antologia não apenas celebra o talento de novos escritores, mas também convida o leitor a se perder e se encontrar nas entrelinhas de histórias que continuam a ecoar muito depois de suas páginas serem viradas.

Wellington Souza

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