Livro: Estórias Tétricas, de Hugo Tavares

A testa de Gil sangrava até a sobrancelha, fazendo o contorno. Os olhos agora estavam vermelhos e as mãos roxeadas. A respiração forte era acompanhada de alguns grunhidos. Vão matar a gente! Para essa porra, Gil, gritava Waldir. Ouviu-se o primeiro disparo, que ricocheteou na lataria. O segundo espatifou o vidro traseiro. Gil, Gil, porra, continuava Waldir, agora, com as mãos no volante e puxando a perna de Gil.

BIO

Hugo Tavares nasceu em Belém, Pará, em 1995. Engenheiro de computação e escritor, teve sua estreia na literatura em 2019, com o livro de contos Relatos Urbanos. Em 2020, lança sua segunda obra, intitulada Estórias Tétricas.

DADOS

Livro impresso em Pólen Bold
122 páginas
2020
Editor responsável: Well Souza
Produção Editorial: Kalyne Vieira
Capa: Marcela Alves
Projeto gráfico: Luyse Costa
Diagramação: editora trevo
ISBN 9786558510000

Estórias tétricas apresenta onze contos ambientados em terras paraenses que retratam a violência urbana por lentes realistas, cruas e, por vezes, até irônicas. A narrativa aguda e visceral escancara a sociedade na sarjeta, onde selvageria e condutas humanas se fundem.

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PREFÁCIO

O escritor que lerão a seguir, de nome Hugo Tavares, a mim sempre foi Neto. Pouco posso ou devo falar dele como irmão, somente direi que apesar de numericamente mais novo, o irmão mais velho sempre foi ele, pois muito mais me ensinou do que aprendeu comigo. Como escritor, a coisa muda. Tentando discernir a figura fraterna da literária e tendo tido a honra de ter lido e relido a obra a seguir, não creio estar errado ao afirmar que há uma voz original aí.

Alguém já disse que a arte existe porque a vida não basta, e é exatamente isto que senti ao ler este livro: ao se deparar com a realidade absurda da condição humana e ao ter certeza que a ficção nunca consegue ser mais esdrúxula que a realidade, Neto usa de sua pena para denunciar o mundo, para nos causar tanto náusea quanto lágrimas.

Munido de ponto de vista elíptico e olhar irritantemente sensível, ele nos conduz por paisagens paraenses que tanto podiam ser paulistas ou catalunhas, por personagens cabocos que facilmente poderiam habitar esse século ou os outros cinco anteriores, por sentimentos marajoaras que cada um sentirá uma vez na vida, pois sua escrita é universal.

No mais, a vida segue sendo irônica, pois eu sempre fui o irmão leitor e literato, porém quem nasceu com o verdadeiro dom para a escrita foi ele, a nos curar da brevidade dos sonhos.

Lucas Tavares,
Belém, 20 de julho de 2020

COMENTÁRIOS

Fernanda, na amazon.com.br
4,0 de 5 estrelas Muito bom
Avaliado no Brasil 🇧🇷
Compra verificada

O segundo livro do autor conta com 11 contos policiais que abordam temas como violência doméstica, feminicídio, drogas, intolerância e violência urbana.

As histórias se passam no Pará, são bem realistas, o que a gente vê muito em jornal, internet e em relatos.

Os contos me prenderam e alguns até me chocaram, de tanto que não temos conhecimentos de tantos casos como ali acontece.

A leitura é super fluída, você engrena um conto no outro e nem percebe que terminou o livro, a escrita te prende e os contos não são extensos.

Recomendo a leitura para quem gosta de livros policiais, vale muito a pena.

*

Vanessa Papalardo, na amazon.com.br

4,0 de 5 estrelas Estórias Tétricas
Avaliado no Brasil 🇧🇷

Sabe aquele compilado de contos instigantes que te faz não querer mais parar de ler? Lhe apresento agora!

Contos curtos e breves, porém, muito instigantes, que relatam casos policiais ocorridos no Pará.

Violência urbana, casos que acontecem diariamente em qualquer região não só do Pará, mas em todo o Brasil e possivelmente, em vários países.

Além de ser completamente instigante, investigativo, com uma pitada de suspense, os contos te permitem conhecer um pouco mais da região Paraense, visto que os contos são ambientados e relatados em seu território.

Leitura rápida, de fácil compreensão, perfeito para sair de uma ressaca literária ou até mesmo para distrair de leituras mais pesadas.

Autor nacional, de grande potencial com histórias abordadas de uma forma um tanto quanto necessária.

Recomendo a leitura!

 

CONTO : Boato

O meu nome é Cleide, eu sou empregada doméstica. Lavo, passo e faço uma maniçoba, ó, só perguntar pro meu patrão. Ah, meu filho, eu comecei a trabalhar com catorze anos. Fui vendida ainda lá em Colares pra uma casa de família e me mudei pra capital. O ano? Acho que foi final de 1954. Ganhei um quartinho num casarão enorme que ficava na São Jerônimo. Era da família Nunes. Os patrões eram o seu Paulo e a dona Débora. Eles tinham cinco filhos. Clarice, Rebeca, Tereza, Yara e o caçula, Manoelzinho. Eu era louca por eles. Vi todas essas crianças nascerem e crescerem. Troquei falda, dei mamadeira, tudo. Uma vez eu até salvei a vida do Manoelzinho. A Antônia, que era a cozinheira mal-humorada, botou água pra ferver e foi-se embora fofocar com o Cláudio, motorista. Deixou a panela lá, no fogo. O Manoelzinho entrou na cozinha e, com o cabo da vassoura, puxou a panela do fogão. Pra minha sorte, eu estava passando com os legumes. Só deu tempo de empurrar o menino e escaldar minha perna. Aquilo ardeu, mas ardeu. Aí a Antônia apareceu com os olhões esbugalhados perguntando o que tinha acontecido. Olha sua filha da puta, tu não deixas mais água no fogo e vai te embora, eu disse. Já pensou? O menino ia ficar com a cara queimada tudo. Passei uma vida com aquela família, meu filho. Aí teve um dia que sumiu o colar de esmeralda da patroa. E todo mundo revira a casa, cadê o colar da patroa, Antônia, vê dentro das panelas, Cláudio, olha o carro, Cleide, os sofás, cadê o colar de pedra da patroa. Nada. Acabou que eu que paguei a conta, meu filho. A Antônia botou minhoca na cabeça da dona Débora e sobrou pra mim. Nunca na minha vida pensei que a patroa fosse me acusar. Depois de tudo que eu fiz pelos filhos daquela vagabunda, tá louca? Só que se ela me mandou embora por ser ladra, eu ia fazer por merecer. Arrumando minhas coisas, eu peguei uma taça de cristal linda que a patroa tomava champanhe e coloquei na minha bolsa. Vá se à merda.

Passei um tempo desempregada, meu filho. Fazia uns bicos de cozinheira e faxineira. Puta eu nunca fui. Então, conheci o seu Paulo, onde eu trabalho até hoje. Ele tinha acabado de se mudar porque a esposa faleceu. Já são quase… eu nem sei. Cheguei em 78. Nove anos, isso. Toda manhã eu pego o Pedreira-Lomas. Chego cedo, nunca me atrasei. Preparo uma xícara de café preto, sem açúcar, e meio pão careca com margarina. Margarina, manteiga não. Conheço os gostos do seu Paulo. No resto do dia, faço o almoço, picadinho ou carne assada, faxino e deixo o jantar só pra esquentar no micro-ondas. Seis da tarde, pego outro ônibus. Passo uma hora no trânsito pra chegar em casa. Tomo uma canja e vou ver minha novela. Todo dia é assim.

Se eu tenho alguma história pra contar? Meu filho, eu sempre trabalhei pros outros. Nunca vivi pra mim. Polícia? Deus que me livre. Olha, tem uma coisa que aconteceu comigo. Mas tu não vais escrever isso, hein?

Eu pego ônibus todo dia, né? Pra ir e voltar do trabalho. Às vezes passo mais de hora naquele trânsito da Marquês. E eu sei de tudo. Adoro ouvir conversa dos outros. É o que me distrai. Sei que a Eliana trabalha num prédio na Nazaré e trai o marido com o porteiro Rubens. Sei que o Marcelo trabalha como entregador na padaria continental e rouba todo mês dinheiro do patrão. Sei que a Gabriela estuda arquitetura na federal e fuma maconha com as amigas. Eu sei de tudo. Já ouvi de tudo.

[continua no livro]

 

CONTO : O Grand Hotel

Foi logo depois da virada do ano. Eu estava sentado na mesa do café passando manteiga na torrada quando o jornal da manhã entrou no ar. O jornalista âncora tinha cabelos e barbas grisalhos, usava um terno azul marinho bem cortado e falava de forma macia. Mexendo pouco as sobrancelhas e inexpressivo, ele deu a notícia que o país enfrentaria a maior crise econômica do século. E assim como o povão, eu estava pouco me fodendo pro que esses executivos safados falavam. Além do mais, na televisão só passava merda. O problema é que a conta chegou mais cedo. Em semanas o número de desempregados explodiu, alcançando estatísticas recordes. E o que tu achas que aconteceu com os fodidos da baixada? Exatamente. Foram os primeiros a tomar no cu. E comigo não foi diferente. Na verdade, foi. E é aí que eu quero chegar.

Uma merda nunca acontece sozinha. No desespero, na ânsia de puxar o fôlego para não se afogar, é quando você chega à superfície pela última vez. Quando fui demitido, eu não tinha dinheiro no banco, nem carro, nem imóvel, nem porra nenhuma. Pobre não quer saber de futuro. Já sofreu tanto na vida que quer o conforto agora, mesmo que dure pouco. Todo meu salário era torrado com rodadas de cervejas pra rapaziada no Bar do seu Afonso e putas no pinga pus. Nunca tive família. Mas não quero pena dissimulada de ninguém. Foram as minhas escolhas e eu respondo por elas. Enfim, quando fui demitido, sem um puto no bolso, a grana fez falta logo. Não no rango, que eu conseguia me virar, comia uns pães velhos que me custavam centavos e vida que segue. Agora o aluguel não tinha jeito. Até onde eu sabia a locatária não aceitava folha como pagamento. Depois de três meses atrasando o aluguel, a dona Maria me chamou:

– Meu filho, eu preciso do dinheiro ou da casa. Sei da sua situação, mas eu também sou necessitada. Sou velha, tudo que eu recebo é esse aluguel. – Dona Maria era uma senhora obesa e diabética. Andava mancando e sempre estava comendo doce. Picolé, chope de frutas ou até água com açúcar. Eu pude sentir a sinceridade e dor naquelas palavras. No subúrbio é a lei do mais forte, não tem o que fazer.

– Dona Maria, a senhora está certa. Mas eu tô passando por algumas dificuldades. Só peço pra senhora mais alguns dias, três no máximo, que levo o dinheiro. Lhe dou minha palavra.

– Meu filho, eu só posso esperar até sexta. Depois de sexta, se você não pagar o aluguel, você vai ter que ir embora. – Ela tinha voz rouca, de quem fumava há cinquenta anos. Ao terminar, tirou uma bala de um papel rosa e pôs na boca.

 

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